Os negros são gigantes nas trilhas, nos ritmos e versos da música brasileira
Professor e Jornalista Emanuel Andrade*
A influência dos negros na cultura brasileira sempre se conectou com a música,ritmos,sabores e religiosidade. Historicamente, o negro vem a ser, apesar das vicissitudes que enfrenta, um dos componentes mais criativos no cenário da cultura brasileira e aquele que, junto com os índigenas, mais singulariza o nosso povo. Ser negro no Brasil não é fácil, ainda mais em tempos atuais em que as agressões racistas se multiplicam em todas as esferas sociais.
Falando de arte, reverenciamos o Brasil mestiço em nome de Pixinguinha, Cartola, Zé Kéti, Lupicínio Rodrigues, João do Vale, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Tim Maia, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Jorge Benjor, Gilberto Gil, e tantos outros.
O que este nomes (alguns In Memoriam) da MPB tem em comum? Para além de seu papel de compositores e intérpretes no horizonte do cancioneiro brasileiro, levaram para a música as dores e amores do seu povo, longe da ficção, mas profundamente dentro da realidade cotidiana.
Diretamente ou até mesmo na forma metafórica expuseram nas entrelinhas de seu canto/ comportamento a cor da pele, o orgulho da negritude e em algumas ocasiões denunciaram o preconceito recorrente. Cantaram desde Zumbi dos Palmares ao territórios quilombolas constituídos após a estupidez da escravatura.
Cada um deles, dos anos 1960 par cá, compôs ou apenas interpretou alguma canção na qual se expressou a alma de sua negritude. Em 1981, o cantor e compositor mineiro-carioca Milton Nascimento foi provocado por Dom Helder um dos grandes pensadores religiosos da Igreja Católica e de esquerda no Brasil, a montar o que se chamaria a Missa dos Quilombos. Composta de maneira coletiva, tornou-se uma obra interartística tendo como temática principal a história da escravidão do negro, da esperança do quilombo, da redenção da Igreja perante o negro e a denúncia do racismo atual.
Em sua trilogia, Gilberto Gil lançou o disco Refavela(1977) apontado como uma das obras mais marcantes da MPB do século 20, que nasceu após o artista participar do festival de arte e cultura negra em Lagos, na Nigéria. O disco trouxe uma reflexão sobre o negro e a cidade e de que forma a tradição negra pode se instalar no urbano, sobrevivendo por meio da cultura e mesclou vários gêneros afros. Na maioria de seus outros discos, o baiano sempre reverenciou os negros, como em Sarará Crioulo (do disco Realce, 1978).
Nos anos 1980, foi o responsável pela trilha sonora do filme Quilombo, de Cacá Diegues, mapeando a trajetória Ganga Zumba, um príncipe africano e ex-escravo fugido, que se torna o líder do Quilombo de Palmares. Mais tarde, seu herdeiro e afilhado, Zumbi, contesta suas ideias conciliatórias, enfrentando o maior exército jamais visto na história brasileira.
Carioca do Morro do Estácio Luiz Melodia que fundiu a tradição sambista com o rock, em vários momentos da carreira musicou sua negritude. Ele deu originalidade ao interpretar Negro Gato, e expressou a condição social de seu povo em canções como Mistério da Raça, Negra Melodia e Pérola Negra.
Rei do swing, Jorge Benjor também exaltou os negros em canções clássicas e icônicas lançando luz sobre os negros em vários dimensões sócio-culturais. Mergulhado nessa temática, em 1976 fez o disco África-Brasil, com sucesso comercial e de crítica e destaque na revista Rolling Stone. O disco abre com Ponta de Lança Africano e em seu repertório criativo foca na raízes afro-brasileira.
Benjor, também exaltou esse universo em clássicos como Chica da Silva, Zumbi, Menina Mulher da Pele Preta e Negro é lindo. Através da música, literatura e cinema, podemos também enxergar o tamanho da desigualdade racial existente no Brasil.
O período colonial-escravocrata deixou o racismo como uma de suas maiores e mais dolorosas heranças. Ainda bem que existe a arte para servir de escudo nesse contexto de exaltação das raízes africanas, relatos do cotidiano nas favelas, denúncias de racismo e celebração da identidade negra.
A lista é extensa, mas há canções que atravessam suas simbologias: Negróide (Taigura), Cangoma me Chamou (Clementina de Jesus), Uma Vida (Dom Salvador e Abolição), Sou Negro (Toni Tornado), Canto das Três Raças (Clara Nunes), Mandamentos Black (Gerson King Combo), Dia de Graça (Candeia), Senhora Liberdade (Zezé Motta), Inferno Colorido (Bezerra da Silva), Sorriso Negro (Dona Ivone Lara/Jorge Ben Jor), Nega Mina ( Alcione) e Olhos Coloridos ( Sandra de Sá). Nessa canção, Sandra é incisiva: “Você ri da minha roupa/Você ri do meu cabelo/Você ri da minha pele/Você ri do meu sorriso/A verdade é que você (E todo brasileiro) Tem sangue crioulo”
Por fim, como não se chocar com o grito de Elza Soares, em Carne (2002): A carne mais barata do mercado é a carne negra que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico/Que vai de graça pro subemprego e pros hospitais psiquiátricos”. O Brasil esqueceu de educar sobre o respeito à própria miscigenação que se originou aqui. O Brasil nunca fez a lição de casa.
*Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).