Enquanto nos fixamos em nossas telas, que exibem as desgraças do oriente médio, perdemos o foco no quintal de nossas casas. Neste quintal, o Estado brasileiro e o cidadão estão em conflito, há até morte em Apyterewa, onde o Estado resolveu retirar agricultores que ele mesmo assentou. Mas há um conflito bastante insólito, que está ocorrendo na Praia do Futuro, em Fortaleza. Nela, um empreendimento patrocinado pelo governo cearense gerou fortes manifestações negativas de grandes empresas de telecomunicações.
Por algum motivo, o Estado decidiu construir uma usina de dessalinização, inicialmente, a 40 metros da região de ancoragem de 16 cabos submarinos de fibras ópticas internacionais. A distância de projeto foi alterada, após protestos, para algo em torno de 500 metros.
Considerando-se a eficiência do Estado na administração de suas obras, as preocupações dos empresários de telecom não são infundadas. Os cabos submarinos são nossos principais recursos de comunicação, não apenas por representarem um meio de comunicação resiliente e estável, mas pela grande capacidade de transporte de dados. Fortaleza, hoje, é o segundo maior hub de cabos submarinos no mundo e é responsável por mais de 90% do tráfego internacional de dados e internet no país.
A parceria público-privada liderada pela estatal Cacege argumenta que a praia, sempre lotada de turistas, apresenta a melhor qualidade de água e maior proximidade dos reservatórios já existentes. Mas 500 metros de distância de 90% da internet brasileira, por que tão perto, em uma praia de 8 quilômetros de extensão? Naturalmente, esta proximidade leva a grandes preocupações quanto a segurança desta infraestrutura e a abrangência de potenciais impactos para mais de 89% dos lares brasileiros que utilizam a Internet como forma de comunicação e entretenimento.
Passada a fase de obras, supondo que, pela sempre bem-vinda intervenção de Padre Cícero, a obra pública chegue a bom termo, a usina de dessalinização oferecerá risco para os cabos? Diretamente, não! Uma usina, entretanto, precisa ser mantida. A manutenção utilizará embarcações e estruturas de suporte que precisarão ser ancoradas no leito oceânico. É aqui que os problemas recomeçam.
Em julho de 2022, um cabo submarino repousando no leito do Mar Vermelho foi danificado, por uma âncora de navio mal lançada, comprometendo o tráfego de dados de, ao menos, sete países que enfrentaram blecautes, lentidão e quedas nos serviços. Mas os problemas não param aí. Trata-se de uma obra cara e que apresenta potencial impacto ambiental, quando da eliminação dos resíduos de salmoura. Outro ponto a se considerar é que o setor público de serviços de distribuição de água, apresenta um Índice de Perda na Distribuição (IPD) no Brasil, de 38,5%, e que é ainda maior na Cacege ). Ou seja, quatro a cada 10 litros de água potável produzida são perdidos na distribuição, antes de chegarem ao consumidor final.
O vulto dos riscos e potencial de impacto parece indicar que uma obra mais conservadora, mesmo com maior custo, é a melhor opção. Esta recomendação, embora lógica, nos leva a meditar sobre sua origem, a desconfiança que o cidadão e as corporações nutrem em relação ao Estado. Qualquer que seja a solução, será apenas mais um custo que nós contribuintes arcaremos, porque permitimos a existência de um Estado ineficiente.
Artigo de *Amilton C. Rattmann e Gian Brustolin
*Amilton C. Rattmann, engenheiro eletricista e mestre em gestão ambiental, especialista de redes de dados com experiência em empresas de telecomunicações e TIC e é professor e pesquisador do Centro Universitário Internacional (UNINTER).
*Gian Brustolin, engenheiro e mestre em gestão ambiental, ocupou cargos de alto executivo de multinacionais de telecomunicações e é professor e pesquisador do Centro Universitário Internacional (UNINTER).