Entidades identitárias também celebram a possibilidade da recriação de um ministério próprio, uma promessa da campanha do presidente eleito
Um dos temas elencados como prioritários pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, a questão da igualdade racial no país ganhou um grupo específico dentro da transição entre gestões, mas, segundo integrantes da equipe, as discussões devem ser levadas a todas as áreas do novo governo. No dia em que se comemora a “Consciência Negra”, entidades identitárias também celebram a possibilidade da recriação de um ministério próprio, uma promessa da campanha de Lula com que a equipe trabalha. Em debate, está a criação de estruturas públicas focadas na população negra em todas as futuras pastas da Esplanada, seja na forma de secretarias, diretorias ou coordenações, de forma a reduzir os altos índices de desigualdades entre raças no país.
— A centralidade da tarefa do grupo de trabalho de igualdade racial é garantir a recriação do Ministério da Igualdade Racial com estrutura, com orçamento, mas também, paralelamente, garantir a transversalidade e a intersetorialidade da pauta de igualdade racial nas demais pastas — afirmou ao GLOBO um dos coordenadores do grupo na transição, Yuri Silva, ativista do movimento negro.
Em entrevista para o “Fantástico” no domingo passado, a primeira-dama, Rosângela Silva, a Janja afirmou que o combate ao racismo está entre as suas três principais prioridades para a próxima gestão, junto com o combate à violência contra a mulher e questões relacionadas à alimentação da população. Na transição, um dos principais objetivos do grupo técnico responsável pela igualdade racial é garantir a entrega de um plano amplo, que envolva diversos aspectos da sociedade para reduzir desigualdades e garantir a inclusão da comunidade negra.
Antes de fazer propostas, porém, o grupo tenta levantar a estrutura atual para saber se é possível abrigar o novo ministério. No governo de Jair Bolsonaro, o assunto era debatido na Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, dentro do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), e um Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
O orçamento para viabilizar o órgão e o número de servidores disponíveis gera preocupação entre membros da equipe, devido ao arrocho das contas para o próximo ano. A equipe de igualdade racial da transição também prepara um raio-X das políticas que foram desenvolvidas nos últimos anos, além de contratos e uma estrutura disponível. O grupo tem contado com ajuda da equipe da economia para montagem da proposta orçamentária.
— A gente quer dialogar cada vez mais com a Educação para que leis aprovadas durante o primeiro governo de Lula, relacionadas à inserção da cultura afro-brasileira e africana e da cultura dos povos originários indígenas no currículo escolar, possam sair do papel. É importante que a gente estabeleça a educação pluriétnica como uma orientação para que o MEC siga — disse outro coordenador do grupo, Martvs das Chagas. — Da mesma forma, no Ministério da Saúde temos o Plano Nacional da Saúde Integral da População Negra. Há algumas políticas em determinados ministérios que nos permitem fazer a ação mais transversalizada.
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Desigualdade — Foto: Editoria de Arte
Estudo feito pelo IBGE, intitulado “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, mostra que a queda na renda familiar dos brasileiros verificada desde 2019 está ocorrendo acompanhada de um aumento na disparidade entre negros e brancos. Em 2020, negros ganhavam em média 48% menos que brancos; em 2021, a lacuna foi ampliada para 49,4%.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados no meio deste ano, 77,9% das mortes violentas intencionais foram de pessoas negras, enquanto apenas 21,7% das vítimas eram brancas. Essa categoria inclui homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes por intervenção policial. O mesmo levantamento mostrou também que 62% das vítimas de feminicídio no Brasil são negras.
Retorno da valorização
— A gente quer o retorno da valorização da participação negra no Brasil, entendemos que uma das faces do golpe e do bolsonarismo que cresceu no nosso país foi atacar frontalmente o legado da consciência negra. Não à toa, era uma frente do governo destruir a imagem de Zumbi dos Palmares — afirma o dirigente do Movimento Negro Unificado (MNU), Simone Nascimento. O grupo tem a pedagoga e coordenadora nacional do movimento, Iêda Leal, como uma das representantes na equipe de transição.
O retorno da valorização é uma referência a medidas adotadas pelo ex-presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que atacou a data da celebração da Consciência Negra e propôs a necessidade de rever a imagem do líder quilombola, Zumbi dos Palmares, como herói. Além das posições de autoridades do governo Bolsonaro, o movimento negro denunciou o desmonte de políticas para área durante a gestão do atual presidente.
Em maio, a Coalizão Negra por Direitos, juntamente com partidos, entre eles o PT, e outras 250 organizações, ingressou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra os impactos da política governamental de Bolsonaro na população negra. Entre os dados, o grupo cita o impacto da pandemia nessa população, os altos índices de insegurança alimentar entre as famílias negras, além das mortes causadas pela violência policial. A ação afirma que há “autorização implícita para uso exacerbado e desproporcional da força policial” dentro das comunidades.
Análise da ONU
Na última semana, o Comitê pela Eliminação da Discriminação Racial e pelos Direitos Humanos (CERD) da ONU se debruçou sobre o caso brasileiro, com audiências em Genebra, a partir de relatório elaborado por ONGs brasileiras e enviado à organização. A conclusão, divulgada na última sexta-feira, foi de que, durante a gestão Bolsonaro, “uma série de medidas têm se traduzido em retrocessos e aumento das desigualdades, aprofundando ainda mais a discriminação racial e se constituindo em uma política de morte perpetuada pelo Estado contra a população negra brasileira”. Nos próximos dias, serão enviadas recomendações ao governo sobre o assunto, que podem ser assumidas pela nova gestão.
Enquanto o Ministério dos Direitos Humanos, da Mulher e da Família enviou um documento apenas com dados até 2017, destacando, inclusive, conquistas das antigas gestões petistas como a Lei de Cotas e o Minha Casa Minha Vida, o chamado “relatório sombra”, feito pelas ONGs, destacou o esvaziamento da política habitacional, o aumento da fome — que atingem principalmente a população negra — e o desmonte da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR) e dos conselhos participativos.
— Apresentamos dados reais, pautados em fatos e dados oficiais. Por isso, avalio muito positiva a atuação da sociedade civil, que agiu de forma transparente, apontando as violações históricas. O governo atual, por sua vez, encerra a participação na ONU devendo informações sobre as omissões com a população negra — afirma Rodnei Jericó da Silva, advogado e coordenador do programa SOS Racismo de Geledés Instituto da Mulher Negra. (O Globo)