Em entrevista ao GLOBO, o cirurgião Ricardo Cohen, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, fala das mudanças nas regras da cirurgia bariátrica
Nesta semana, a Federação Internacional para a Cirurgia da Obesidade e Distúrbios Metabólicos determinou novas orientações para a intervenção cirúrgica, cuja função é reduzir o peso dos pacientes. Em resumo, sai de cena a necessidade de que pessoas com Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 35 tenham doenças relacionadas para chegar ao procedimento cirúrgico, conta Ricardo Cohen, coordenador do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Oswaldo Cruz, um dos coautores das novas indicações. Outra mudança diz respeito aos diabéticos, pacientes para os quais a cirurgia também será indicada, a partir do IMC no patamar 30 em diante.
Para além das mudanças internacionais, cujo escopo deve ser espelhado no Brasil, Cohen defende uma abordagem específica no consultório: exercícios e dieta são úteis para prevenção da obesidade e como tratamento paralelo à bariátrica ou uso de medicamentos para controle de peso. Trata-se de uma estratégia mais eficiente e que tira a culpa do paciente, ele diz. O médico recebeu a reportagem no GLOBO, no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, onde ele conversa com os candidatos à cirurgia sobre sua rotina, ansiedades e cuidados com o tratamento. Lá as poltronas de atendimento, o banheiro e a largura das portas foram ajustados para que todos possam se sentir confortáveis. “O paciente cansou de ser estigmatizado”.
O que muda com as novas diretrizes?
A primeira mudança é que a cirurgia para diabetes entra nas mesmas regras (para bariátrica em geral), ela passa a ser indicada para pessoas de IMC acima de 30, sem melhor tratamento clínico. Além disso, há as novas regras para os que tenham IMC acima de 35 sem comorbidades. Não são necessárias comorbidades para essa intervenção (cirúrgica) porque essa pessoa tem uma doença que se chama obesidade, é isso que essa nova diretriz mostrou. Em 1991 — quando a primeira versão das normas entrou em vigor — não existia estudo randomizado, existia somente a percepção de cirurgiões que a operação poderia ser boa. Hoje, por outro lado, temos estudos populacionais, na Suécia, por exemplo, com 30 anos de segmento. Temos muito mais consistência científica para mostrar que a bariátrica é muito eficaz e muito segura.
O Brasil deve seguir a mesma linha?
O país não espelha ainda. É algo que está em discussão no CFM (Conselho Federal de Medicina). Essa alteração nas diretrizes internacionais influencia diretamente os médicos brasileiros. Não há por que o Brasil não adotar, são mais de 300 referências que justificam essa nova decisão. Ainda não é possível saber quanto tempo o Brasil levará para adotar a mudança, mas uma boa estimativa é que ocorra no primeiro trimestre do ano que vem.
Com a mudança da diretriz, é possível estimar quantas pessoas a mais seriam elegíveis para a cirurgia?
Sabemos que com IMC acima de 40 são 6% da população brasileira. Se pensarmos em pessoas com IMC acima de 35 devem ser uns 10%, falamos em pelo menos 20 milhões de pessoas elegíveis à cirurgia. É bem mais que a população da cidade de São Paulo.
Como não ferir a autoestima do paciente ao falar sobre cirurgia bariátrica?
Neste ponto não temos que focar só na cirurgia bariátrica. A obesidade, por si só, é uma doença estigmatizada. Em muitos casos, culpa-se a pessoa por ter obesidade. Veja, não fazemos isso com o câncer, esse é um paralelo que podemos fazer. Não é culpa dessas pessoas que elas tenham esse diagnóstico. Sendo o doente culpado, ele acaba não procurando auxílio médico ou cirúrgico. Porque ele se enxerga como culpado.
Qual é o futuro do tratamento de pessoas com obesidade?
O presente é o desenvolvimento de novas medicações (para o controle do peso) e também a combinação de cirurgia com medicações. O futuro distante — ainda sem definição — é a identificação genética de quem se beneficiará de novos medicamentos e de quem poderá se sair melhor com a cirurgia. A medicina de precisão nos mostrará quem é o melhor paciente para cada tratamento. Apenas sabemos que algumas pessoas não respondem adequadamente a cada tratamento.
Há alguma revolução recente?
Pela primeira vez vemos medicamentos que têm grande eficiência, não há resultados a longo prazo, mas os dados iniciais são bem animadores. São chamados os hormônios intestinais. Além disso, a perda de peso passou a ser considerada um tratamento oficial para controle da diabetes, algo muito importante. Foi difícil, mas a comunidade científica compreendeu.
O volume de bariátricas feitas no Brasil e no mundo é suficiente para fazer frente às taxas cada vez mais altas de pessoas com obesidade?
O mundo inteiro opera entre 1% e 5%, somente, dos pacientes que precisam de cirurgia bariátrica. Isso é nada. É o mesmo que dizer que somente 5% dos homens com câncer de próstata são tratados, o resto “procure sua sorte”. Isso tem várias causas, entre elas a estigmatização da doença, dizer (erroneamente) que a cirurgia mata, que a cirurgia é ruim, que deixa a pessoa maluca, dizer que os remédios utilizados dão náusea e pancreatite. O que é uma bobagem. Toda intervenção médica, seja cirúrgica ou clínica, tem efeitos colaterais — mas são muito menores que os benefícios de procurar ajuda. A estigmatização da doença e do tratamento é um grande problema que temos que enfrentar.
Por que esse número é tão baixo?
Em primeiro lugar são os pacientes que se sentem culpados e não procuram ajuda. Em segundo, há médicos que acreditam que a cirurgia é muito agressiva, assim como novos tratamentos com medicamentos disponíveis. Mas repito: considerar a obesidade um problema comportamental é miopia científica. Você sabe que na Alemanha a obesidade só foi considerada uma doença em 2018, antes não era considerada nada. É preciso entender que a obesidade não é um fator de risco, é uma doença que precisa ser tratada, pois a vida da pessoa pode ser piorada — com problemas de mobilidade, diabetes e pressão alta, por exemplo. Se isso não for tratado, a mortalidade aumenta e cresce todo o custo do sistema público ou privado. É uma doença séria que requer tratamento.
Há algo sendo feito para mudar isso?
Deve sair em breve uma declaração internacional que também estou trabalhando, que diz que a obesidade é como doença crônica que requer tratamento. Ainda diremos que há casos em que a pessoa pode ser observada, não necessariamente tratada — vamos avaliar a distribuição de gordura corporal. O paciente será observado e haverá a classificação da severidade de cada caso. Não vamos dar remédio e cirurgia para todos, mas 70% necessitam de tratamento. Queremos que o mundo perceba que não é para deixar esses pacientes para lá, pois isso aumentará a taxa de derrames, infartos, cânceres, entre outros quadros.
Estamos lidando com os quadros de obesidade com as estratégias erradas?
Com certeza está errado. Essa conversa de fazer exercícios e comer menos é excelente para ser um tratamento adjuvante (paralelo) para qualquer intervenção cirúrgica ou clínica. Ou para prevenção. Pensar em tratamento só com mudança de estilo de vida, não serve para muita coisa. Realmente, enquanto não diferenciarmos o que é prevenção e o que é tratamento estaremos usando as armas erradas. Nós que somos médicos da área, não temos mais essa impressão, mas especialistas de outros ramos sim. Por isso muitos tratamentos não dão certo. Falar para uma pessoa que precisa de tratamento para fazer atividade física e comer menos é papo para boi dormir. (O Globo)