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Em centenário, Paulo Freire ganha aplausos do mundo e silêncio do governo federal

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Conheça a história do maior filósofo educacional brasileiro, Patrono da Educação do país e alvo de hostilidade constante do governo Jair Bolsonaro

Dona Iva Pereira Silva, agricultora, está apredendo a letras aos 58 anos de vida Foto: Cristiano Mariz
Dona Iva Pereira Silva, agricultora, está apredendo a letras aos 58 anos de vida Foto: Cristiano Mariz Newsletters

RIO E BRASÍLIA – Na rotina da roça, Iva Pereira da Silva, ainda criança, não conseguiu ir para a escola. Aprendeu a plantar arroz, feijão, milho e mandioca, a cuidar das galinhas e dos porcos e a criar os três filhos. Só aos 58 anos, completos em 2019, começou a estudar as letras.

— Estou quase aprendendo a ler e escrever. A pessoa que não estuda é cega — resume a senhora de Planaltina, cidade satélite de Brasília.

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Quando ela nasceu, em 1963, surgia para o Brasil o filósofo e educador Paulo Freire. Foi nesse ano que ele colocou em prática seu bem-sucedido método de alfabetização de adultos, com um grupo de trabalhadores de Angicos (RN), em experiência que ofereceu letramento a 300 pessoas em apenas 40 horas de estudo.

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TRIBUNA DA INTERNET | Category | Geral

Paulo Freire foi preso pela ditadura militar por ensinar a população pobre, precisou se exilar e se estabeleceu como o maior filósofo da educação brasileira. Mesmo assim, seu centenário de nascimento, celebrado hoje no mundo inteiro, deve passar sem cerimônias pelo Ministério da Educação (MEC). Após meses de silêncio, apenas um seminário deve acontecer em outubro, realizado pelo Conselho Nacional da Educação (CNE), órgão cujas decisões são tomadas por colegiado independente do ministério.

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— O Brasil viveu um processo de democratização a partir dos anos 80 no qual o pensamento de Freire contribuiu muito para a criação de políticas públicas. É coerente que governos democráticos comprometidos com a partilha dos bens culturais produzidos pela Humanidade se inspirem nele para isso — diz a historiadora da educação Dulcineia Ferreira, professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

‘Quero aprender’ , diz Iva

No longo processo de desenvolvimento da escolarização brasileira, o país, com grandes desafios pela frente, conseguiu, a partir da década de 1960, derrubar taxas de analfabetismo (de 40% para 6,6%, em 2020) e aumentar a média de anos na escola do brasileiro adulto (de 2,7 para 11, em 2020) — o objetivo do Plano Nacional de Educação é chegar a 12 para todos em 2024. Hoje, cerca de 700 mil alunos brasileiros completam o ensino básico, anualmente, pela modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Eja), a primeira agenda de Freire, que ganhou o coro de movimentos sociais de educação popular e só teve a sua regulamentação formal nos anos 1990.

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É pela Eja que Iva, que não desanimou nem com a interrupção das aulas pela pandemia, vê o sonho de estudar tomar forma. Mal as atividades escolares foram retomadas, ela voltou a percorrer diariamente os mais de 3km que separam sua casa da escola mais próxima. Uma hora de caminhada e mais uma de ônibus. Na volta, tarde da noite, um caminho de capim alto e cobras.

— Me diziam: “Dona Iva, a senhora é doida”. Mas não é coragem, não. É por causa que eu quero aprender.

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O legado de Paulo Freire se preserva na contramão das políticas do governo de Jair Bolsonaro. Em 2020, o MEC gastou pouco mais de R$ 7 milhões com educação de jovens e adultos, o menor investimento de todo o século XXI.

— É difícil imaginar políticas educacionais piores ou mais “antifreirianas” que as atuais. Quando um ministro de um dos países mais elitistas no acesso ao ensino superior diz que a universidade é para poucos, é sintoma de que estamos num péssimo momento educacional no Brasil — avalia Walter Kohan, professor da Uerj e autor de “Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica”, referindo-se a uma fala do ministro da Educação, Milton Ribeiro.

Defenestrado e chamado de “energúmeno” pelo presidente Bolsonaro, que chegou a escrever no plano de governo que expurgaria a “filosofia freiriana das escolas”, e por todos os ministros que ocuparam o comando da Educação (Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub e Milton Ribeiro), Paulo Freire foi traduzido para mais de 20 idiomas, agraciado com 41 títulos honoris causa e escolhido para nomear 102 centros de pesquisa e mais de 400 escolas no Brasil e nove em outros países.

Toda campanha de detração do bolsonarismo não abalou a posição de Freire de terceiro autor mais citado no mundo em ciências humanas. No Brasil, as referências ao trabalho do educador crescem ano a ano desde 1992, segundo dados do Google Schoolar, e dobraram entre 2010 e 2020, indo de 18.968 para 38.204.

— Por causa de tanta tentativa de desqualificá-lo, esse governo gerou até uma curiosidade. Pessoal que é contra ele pensa: “Já que o Bolsonaro e sua turma falam tão mal, deve ser bom”. Foi um estímulo, uma propaganda — vê Tião Rocha, antropólogo e criador do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento inspirado no educador pernambucano.

‘Pedagogia que liberta’
Freire nasceu no Recife em 19 de setembro de 1921. Formou-se em Direito e já se destacava na educação na década de 1950, questionando o analfabetismo adulto no Brasil. Socialista declarado, teve financiamento da Aliança pelo Progresso — projeto anticomunista do governo dos EUA na Guerra Fria — para a experiência de Angicos.

Lá, no interior do RN, surpreendeu o país com a eficiência dos encontros em que pregava o aprendizado pelos saberes dos trabalhadores analfabetos. O método identificava palavras-chaves utilizadas pelos alunos e, a partir dali, eram trabalhadas sílabas e letras.

— A força maior do pensamento de Freire é a noção de diálogo como um movimento de ensino e aprendizagem. Há uma suposição de que, embora a docência tenha autoridade, não tem todo o conhecimento e portanto quem é discente também tem a capacidade de ensinar — explica o filósofo Mario Sérgio Cortella, último orientando de doutorado por Freire.

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Com o sucesso de Angicos, Freire foi convidado pelo então presidente João Goulart para construir um Plano Nacional de Alfabetização. Naquele momento, os analfabetos — 40% da população do país — eram impedidos de votar. O golpe que decretou a ditadura militar acabou por encerrar o projeto e prender Freire.

Freire contava que, na cadeia, um militar pediu para que ele alfabetizasse os soldados. O bem-humorado educador respondeu que era justamente por isso que estava ali.

Depois dessa experiência, fugiu para o Chile. Deu aula nos EUA, em Harvard, e na Suíça. No exterior, produziu sua principal obra, “Pedagogia do Oprimido”, em 1968, que só chegou oficialmente ao Brasil seis anos depois — até lá, trechos dos escritos do pernambucano circulavam ilegalmente por cópias mimeografadas.

— Quando Paulo Freire diz que a educação é um ato político, em nenhum momento ele diz que era um ato partidário — explica Cortella. — Ele jamais teria a ideia de que a educação é para fazer a cabeça das pessoas, é contrário a toda sua obra que falava de liberdade, autonomia e emancipação.

O Brasil ainda tem 11 milhões de analfabetos e 70 milhões (53% dos adultos) sem o ensino básico. Em 1994, Freire, em entrevista à Folha de S. Paulo, disse por que seu método não acabou com o analfabetismo: “Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política”.(O Globo)